Os caminhos da Solidão

    “O homem sentou-se bruscamente, ia caindo no sono, quando um estremecimento percorreu-lhe todo o corpo. Riu daquela maneira má e, aos poucos, o corpo voltou à posição anterior.  Desta vez não tentou fixar as estrelas, os olhos se fecharam, apenas a língua procurou uma partícula de alimento entre os dentes cavalares.

    Acordou com o sol quente na cara.  Adormecera e acordara naquela mesma posição.  Os braços estavam dormentes. Contra ele havia uma sombra. No primeiro instante, entre o sono e o real, não sabia o que pensar daquilo, mas logo sentou-se de um ímpeto e calmamente fitou o homem que estava diante dele, pernas abertas, mãos na cintura, chapéu de abas largas cobrindo um rosto magro com barba de vários dias.  Por hábito, olhou o cinturão do desconhecido e lá estava a arma, grande, pendurada na correia do couro cru.

    – Que está fazendo aqui ?

    Não respondeu e continuou a fitá-lo. Os olhos do homem não se desviavam dos seus e se podia sentir que havia uma expectativa em sua pergunta.  As palavras simples da interrogação tinham um tom insultuoso e ameaçador. No movimento que fez para tentar levantar-se, o homem pôs a mão no cabo da arma, pronto.  Então ele, apoiando-se nos braços, recuou um nadinha, arrastando-se na terra. O homem estava quase em cima e não gostava que os outros o olhassem do alto para baixo.  

    – De onde diabo veio você ?

    Agora, a pergunta era como uma chicotada e o tom de ameaça crescia. Um ruído esquisito partia do desconhecido : ranger de dentes.  No primeiro instante quase abstraiu o perigo para tentar um daqueles sorrisos, mas depressa compreendeu que a situação não permitiria afrouxar a tensão.  Calmamente o homem  retirou a pistola do coldre e seus dedos tentaram uma carícia macabra.  Deitou a arma na mão aberta, encostando-a, assim, contra seu próprio estômago.

    – Perdeu a fala ?

    André afastou-se mais um pouco e suas pernas se retesaram. A distância agora era mais cômoda e o homem já não o olhava de maneira vertical, piscando à luz forte do sol.  Como num passo de baile, o que estava defronte pôs um pé atrás e outro na frente, enquanto o braço direito, com a pistola, colava-se nos quadris.  

    – Não sabe que isto é terra particular ?

    Nenhuma vontade de responder. Poderia ficar ali o dia inteiro sendo interrogado, à espera de uma oportunidade para livrar-se da enrascadela. O homem poderia falar, até que qualquer coisa desviasse sua atenção para um ataque seguro.  Ele esperaria.  Estava habituado às longas esperas. Uma raiva incoerente crescia dentro de si: que alguém o houvesse apanhado desprevenido, no sono. Mas seu sentido de caçador já o avisava que o adversário não suportaria uma longa espera sem explicações.  

   – O patrão me paga para impedir a invasão da propriedade, – falou o homem quase cuspindo e meio espantado daquela calma.  

   Armou o cão da pistola. Um e outro.  O braço retesou-se e o dedo, no gatilho, contraiu-se levemente.  O cavalo relinchou alto sentindo o cheiro do capim trazido pelo vento, a presença distante de uma cavalariça.  Por um instante o homem desviou o rosto para aquele ruído insólito dentro do silêncio da manhã.

    Com o choque da cabeça de André em sua barriga, o dedo comprimiu o gatilho e a bala subiu.  Num instante estava desarmado, um joelho no estômago, a pistola na altura dos olhos.  André olhou-o sem falar, desceu a arma até à altura do coração e detonou.  O ruído foi abafado pela roupa.  A não ser os braços que, do alto, chocaram-se bruscamente contra a terra, o homem não fez outro movimento.  Fechou os olhos calmamente.  André levantou-se, nenhuma reação havia em sua cara, jogou a pistola em cima dos seus outros pertences e olhou em volta.  Tudo continuava naquela mesma calma da tarde anterior.  Somente, quebrando a paisagem, havia o corpo do desconhecido, também muito calmo.  

    Com o facão grande de cortar mato, André começou a cavar a terra.   

    (O vento zunia na noite escura mas eu não prestava atenção. Sabia o que teria de fazer, não tinha medo, mas a certeza de que tudo ficaria resolvido como era desejo de toda a família.  Menos a mãe. De vez em quando, diante de meus olhos, a cena patética e chorosa voltava. A mãe, de joelhos, falando em Cristo, no mandamento, no inferno. O pai, sentado, calmamente repetia sem cessar que havia a honra, a vingança e a memória do avô. A mãe não se desviava dos seus pensamentos.  Larguei tudo e entrei na noite escura e ventosa, Agora estava caminhando na direção daquela casa, do homem que provocara tudo, de uma pessoa que eu não conhecia que havia matado o avô a mando da polícia.  Galinhas se agitavam no quintal, havia o vigia, mas passei indiferente a tudo, a casa  cada vez se aproximava mais, as janelas encortinadas coando a luz que partia de dentro. Subi os degraus, entrei, na sala de visitas perguntei quem era ele, ouvi a resposta do próprio, os tiros partiram, não ouvi mais nada. Sei que não corri e caminhei calmamente até a beira do rio.  Lá estava o cavalo.

    Há anos.  Nunca mais soube de ninguém, nem dos choros da mãe nem das ordens do pai.)

Terra dura, sem a enchente do rio, agora raso. Uma terra preta que ia ficando frouxa à proporção que o facão penetrava. Trabalhou durante meia hora. Arrastou o homem pelos braços e jogou-o dentro do buraco. A terra voltou ao lugar, sobrou, mas André executou uma dança sem entusiasmo em cima do pequeno monte e quase não se poderia perceber que aquilo ali havia sido escavado.
Em cima daquela sepultura, André começou a construir uma casa.  O trabalho era estafante.  Atravessando o rio encontrou paus de jangada e com eles improvisou a embarcação amarrada de cipós. O facão não parava de cortar árvores, os troncos eram transportados para o outro lado.

     Em dois dias conseguiu toda a armação da casa e outros tantos levou para revesti-la com o barro massapé.  Assim, naquele deserto, levantou-se uma construção esquisita.  Durante horas André olhava a casa e ficava imaginando como poderia transformá-la numa residência sólida, de pedras, de chão menos úmido.  Agora como estava, mal caberiam duas pessoas lá dentro, sem janelas, apenas com a porta da frente.  E um dia surpreendeu-se com esta pergunta : por que erguera aquela moradia, na planície deserta, e não do outro lado do rio onde as árvores davam sombra e os bichos alimentos ?  Matutou durante muito tempo na pergunta e não atinou com a resposta.   


Trechos da primeira parte do romance OS CAMINHOS DA SOLIDÃO, de Hermilo Borba Filho – Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, RS / Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho – Prefeitura Municipal dos Palmares, PE, 2ª. edição, 1987.