Biografias

SOB O SIGNO DA CRUCIFICAÇÃO – HENRY MILLER – VIDA E OBRA 

     Henry Miller é, sem dúvida, o mais importante escritor do nosso século, um dos maiores de toda a história literária, um caso singular de exceção, tornando-se impossível classificá-lo em determinados padrões, já que a sua obra se funde, definitivamente, com a sua qualidade de homem e artista.  Quando Alfred Perlès, amigo dos inacreditáveis anos de Paris, viajou a Big Sur, na Califórnia, onde Miller morava, para escrever sua biografia, ele confessou : “O fato, quase inacreditável para mim, é que Alf está conosco, escrevendo essa coisa curiosa que julga não ser ficção, intitulada My Friend Henry Miller.  

Não será ficção ? É o que pergunto a mim mesmo.”   

Nesta declaração, escrita no prefácio do livro do seu amigo, pode ser encontrada a chave de tudo o que ele compôs e sua maneira própria de revelar-se, já que a sua vida pode ser encarada em termos de ficção ou aquilo que muitos presumem ser ficção não passou de experiência.  Encontramo-nos, então, num impasse, porque ele mesmo escamoteia os acontecimentos, recriando-os ou não, no fundo soltando sua gargalhada dionisíaca, zombando de normas, revolucionando completamente o sentido normal das coisas, de propósito embaralhando-as, ora se declarando um grande mentiroso, ora afirmando que somente a verdade conta neste mundo. O que importa, porém, não é procurar a veracidade nos seus “romances autobiográficos”, mas verificar a importância de sua obra, talvez a mais séria tentativa cósmica tentada por um autor, em que pesem seus defeitos, saltos, imperfeições.  Miller é somente ele, quer nos seus “romances”, quer nos seus ensaios, duma fidelidade canina à vida, mas duma perfeição admirável no uso das palavras que nos parecem duma precisão absoluta, manejando seu instrumento sem torturas ou aflições de forma, os vocábulos saindo dele com a normalidade da água corrente, o próprio Perlès confessando que, durante os anos de Clichy, quando Miller trabalhava em Trópico de Câncer e Primavera Negra, sentava-se à máquina e escrevia “sem pensar”, tal a velocidade com que compunha quinze, vinte páginas de uma só arrancada, como num vômito.   

    Fico tentado em classificar a obra de Henry Miller no tipo da literatura confessional que nos vem desde Santo Agostinho, com passagem por Restif de la Bretonne e Jean-Jacques Rousseau, para atingir, nos dias atuais, Jean Genet, sem contar muitos outros, mas a própria declaração de Miller leva-me a crer que se trata de uma obra semi-confessional, com aproveitamento dos fatos mais importantes de sua vida recriados, transfigurados, caricaturados em forma artística, a vida confundindo-se com a ficção, a tal ponto que já declarou não estar muito certo da ordem cronológica dos acontecimentos, uma boa desculpa para quem quer escamotear o real ou o imaginário.    

Ele nasceu em Nova York, no dia 26 de dezembro de 1891, descendente de alemães, sendo o alemão a língua que primeiro falou, antes mesmo do inglês, uma vez que seus pais costumavam comunicar-se nesse idioma quando em casa.  Talvez porque nasceu no Ciclo do Natal, quando conscientizou o fato tenha adquirido o complexo da crucificação, como se há de verificar no decorrer destas páginas, chegando mesmo a intitular seu mais vasto romance autobiográfico de A Crucificação Encarnada, tomando-se de um sentimento masóquico que se revelava fortemente nos seus inúmeros casos de amor, nas suas andanças por comida e bebida, nas suas vagabundas excursões ao Deus-dará, o que, por outro lado, pode significar, também, uma recôndita crença em algo que ele mesmo não saberia identificar; mas o fato é que, pelo menos nos casos de amor, só se comprazia e se realizava fortemente com mulheres que o traíam, que mentiam, que o atormentavam, como se devesse purgar uma grande culpa ou como se, através desses tormentos, se catarseasse de crimes inconscientes, ainda dentro de uma vaga lembrança do signo natalino do seu nascimento, propondo-se a ser um Cristo moderno em sacrifício permanente de crucificação, embora sua agonia fosse essencialmente introspectiva, mas com ressonância em relação aos seus semelhantes, para os quais, pelo menos em tudo quanto escreveu, mostrou-se de uma generosidade material e espiritual das mais perfeitas, seguindo quase ao pé da letra a palavra evangélica, despojando-se ao máximo para atender a um seu semelhante, por outro lado sem nenhum pejo de apoderar-se das coisas de que necessitava.

    Qualquer estudo sobre Henry Miller, atualmente, só pode ter um caráter informativo, porque “é muito difícil deixar de dizer o que já foi dito”, principalmente por ele próprio, mas não se deve esquecer que, sendo ele o maior autor vivo de nossa época, sua obra e sua história ainda são, praticamente, desconhecidas dos leitores brasileiros, muitos dos quais compram seus poucos livros até então aparecidos aqui apenas com a finalidade de procurar intenções pornográficas, quando o sexo, em Miller, é uma função tão natural quanto o comer ou o defecar, nada tendo de sujo, ao contrário, exaltando-se como uma das formas mais essenciais do homem. “Com toda a certeza transpomos, com Miller, os limites da literatura. Mas se quisermos colocar-lhe uma etiqueta será a do moralista, do místico ou talvez dum humanista dos tempos futuros, livre dos sistemas econômicos ou políticos; ou simplesmente um homem cujo sentido da liberdade explode no tempo em que a liberdade não existe a não ser penosamente num mundo que a invoca tanto para reconhecê-la tão pouco nos outros.” (*)

    Sua infância decorreu no 14º Distrito, Brooklin, Nova York, e mais do que uma simples descrição do que foi a sua vida durante aquele período, nos jogos e conhecimentos de rua, transcrevo o que ele mesmo escreve em Primavera Negra :

    “Sou um patriota… do 14º Distrito, Brooklin, onde cresci. O resto dos Estados Unidos não existe para mim a não ser como idéia, história ou literatura (…). Mas nasci na rua e cresci na rua (…). Nascer na rua significava vagabundear toda a vida, ser livre, implica em acidentes, algo dramático, movimentado, e, sobretudo, significa sonhos (…).  Os rapazes a quem se admira quando se vai pela primeira vez à rua permanecem juntos toda a vida. São os únicos heróis reais. Napoleão, Lênin, Al Capone… são fictícios. Para mim, Napoleão não é nada comparado com Eddie Carney, que foi o primeiro a me dar um soco no olho.  Nenhum homem que conheci me parece tão principesco, tão régio, tão nobre como Lestes Reardon que, pelo simples fato de passear na rua, inspirava medo e admiração. Júlio Verne jamais me conduziu aos lugares que Stanley Borowski tirava da manga do paletó quando a noite caía.  Robinson Crusoé não tinha imaginação comparado com Johnny Paul. Todos esses rapazes do 14º Distrito expeliam um odor especial.  Não eram inventados nem imaginados, mas reais.  Seus nomes soavam como moedas de ouro : Tom Fowler, Jim Buckley, Matt Owen, Rob Ramsay, Harry Martin, Johnny Dunne, para não falar de Eddie Carney ou do grande Lester Reardon (…). Antes da grande mudança ninguém parecia perceber que as ruas fossem feias ou sujas.  Se as tampas do esgoto estavam levantadas, contínhamos a respiração.  Se assoávamos o nariz, o lenço encontrava um grumo de fuligem e não o nariz.  Vivíamos felizes e em paz interior. Ali estavam o café, a calçada, as bicicletas, as mulheres que andavam com passo ligeiro e os cavalos que trotavam.  A vida corria ociosa e prazerosamente. Pelo menos no 14º Distrito (…). Assim como outros recordam de sua juventude um lindo jardim, uma mãe carinhosa, uma estação de veraneio, eu recordo, tão vívidas como se houvessem ficado gravadas mediante a ação de um ácido, as sombrias paredes cobertas de fuligem e as chaminés da fundição de estanho situada diante da nossa casa, assim como as brilhantes e redondas chapas estendidas na rua, algumas brilhantes e resplandecentes, outras enferrujadas, opacas, cinzentas e que deixavam uma mancha nos dedos; recordo as fundições onde o vermelho forno fulgurava e onde os homens avançavam para o refulgente poço empunhando imensas espátulas, enquanto fora viam-se as fôrmas ocas de madeira semelhantes a ataúdes (…). Para mim o mundo inteiro estava compreendido nos confins do 14º Distrito.  Se algo acontecia fora dele, ou não acontecia ou carecia de importância.  Se meu pai saía daquele mundo para pescar, a coisa não me interessava. Só recordo seu hálito de bêbado quando voltava à noite para casa e abria o grande cesto verde para espalhar no chão os retorcidos monstros de olhos pulados (…).  Eram exatamente sete e cinco quando, na esquina da Broadway com Kosciusko Street, relampagueou pela primeira vez Dostoievski em meu horizonte.  Dois homens e uma mulher preparavam uma vitrina. Da cintura para baixo os manequins eram de arame.  Caixas de sapatos vazias jaziam contra a vidraça como neve do ano passado. Foi assim que se apresentou a mim o nome de Dostoievski. Sem nenhuma ostentação. Como uma velha caixa de sapatos. O judeu que pronunciou o seu nome tinha lábios grossos; não podia, por exemplo, dizer Vladivostok nem Carpatos, mas podia dizer divinamente Dostoievski”.  


Trecho inicial do primeiro capítulo do livro HENRY MILLER, de Hermilo Borba Filho – Coleção Vida e Obra – (José Álvaro Editor S.A., Rio de Janeiro, RJ, 1968).