Contos

O GENERAL ESTÁ PINTANDO – EPISÓDIO DO HOMEM BISSEXTO  

    Só era visto uma vez por ano, precisamente na quarta-feira de cinzas, ao meio-dia.  Passeava pelas ruas vazias da cidade, observado pelos que não haviam entrado na brincadeira, os foliões dormindo.  Trajava uma roupa verde-escuro, camisa listrada e gravata amarela, chapéu cor de chocolate, sapatos brancos, ritmando seus passos com uma bengala retorcida, entrava ano e saía ano.  Por isto o apelidaram de Roupa-Só. Andava olhando em frente, sem cumprimentar ninguém, parecia não estar vendo nada. Num dos anos, parou na esquina do Clube Literário, onde ainda flutuava um vago odor de lança-perfume do último baile, uma serpentina dependurada do fio elétrico acariciando-lhe levemente o rosto macilento, afilado, imberbe, com olhos verdes grandes e redondos, e ali ficou muito tempo, escultura, sem se mexer, inquietando os moradores do outro lado da rua, até que apareceu um vira-latas, cheirou-lhe a perna, ergueu a pata traseira, e mijou.  Ele continuou parado, bloco, imutável, ainda, por muito tempo, findo o qual pôs-se a caminhar, os primeiros passos deixando a marca aquosa do pé.  Tentou-se espalhar a lenda de que era uma alma penada que entrava no antigo corpo morto e saía do cemitério para as suas andanças, para ver e apalpar os pecados cometidos durante o entrudo.  Mas isto eram estórias das beatas que voltavam da igreja com uma cruz de cinza na testa.

    Morava num casarão da Rua da Ponte, quase em terras de Japaranduba. Nos muros do casarão se entrelaçavam os melões-de-são-caetano com as rainhas-do-prado, esconderijo de lagartixas sonolentas.  Os moleques que se aventuravam a pular o muro, nas diversas estações do ano, em busca de limas, carambolas, pitombas, mangas e goiabas, viam o capinzal invadindo o sítio, não raro o silvo de uma cobra assanhada, não fosse a gula o medo seria maior, olhando para os fundos do casarão avistavam um alpendre sombrio que se comunicava com o pomar por meio de uma escada de pedras de batentes limosos, esverdeados e escorregadios.  

    Ninguém o via durante o ano, nem mesmo aqueles que, sob os mais variados pretextos, iam à casa : o fiscal da prefeitura, o cobrador de impostos, o mata-mosquitos.  O padeiro, este, não passava do terraço da frente, deixando o pão, de madrugada, num dos bancos estragados.  A casa não tinha luz elétrica e se servia de água de um poço cavado no quintal. Quando estava para acontecer uma eleição municipal, estadual ou federal o prefeito e o juiz de direito iam ao casarão mas também não passavam do terraço, atendidos por uma mulher gorda, albina, seus olhos azuis lutando contra a claridade, entrada em anos, um ralo bigode louro, os peitos na barriga, exalando um odor que o prefeito classificava de fedorento, mas que o juiz de direito preferia dizer ser mais parecido com o de uma buchada quando se abre o bucho, quente, à mesa.  Jamais puderam falar com ele : só o nome : Joaquim Clemente de Paiva Sarmento. Era o que bastava para constar do livro de atas da eleição, tanto fazia, ele podia até estar morto.  A albina fazia tabuleiros de guloseimas para vender: canequinhas de flandres com doce de goiaba ou de banana, batido; cestinhas de papel colorido, recortado, franjado, com bolos de goma; bolas de açúcar de araçá ou cambará ou maracujá, em cachos, envolvidas em papel amarelo ou azul ou verde ou vermelho; canudos de farinha de castanha; alfenins com formas de cavalinhos, flores, bichinhos, menininhos; e além do mais : grudes, manuês, tapiocas ensopadas, pamonhas quando era tempo, sequilhos.  O menino que ia buscar o tabuleiro batia na porta da frente, recebia-o pelo menor espaço  que a porta permitisse, a albina lhe dizia, numa linguagem engrolada, quanto havia de guloseimas.  Quando voltava, à boca da noite, já mais para o escuro,  a albina estava sentada num dos bancos, à espera. Contava as moedas com uma velocidade incrível, os dedos trabalhando como uma laçadeira, entregava ao menino os tostões a que ele tinha direito, grunhia uma despedida, o menino já saía correndo, não fosse a mãe, lavadeira, obrigá-lo, jamais voltaria àquela morada.

    Um dia, a cidade agitou-se. Era uma quarta-feira comum, de outubro, pleno verão, quando ele apareceu, ao meio-dia, a mesma vestimenta, os mesmos andares. Deveria ter-se enganado, contara mal, quatro meses ainda para o carnaval, não podia ser, não devia estar por ali, melhor chamar logo o Cabo Luís, os comentários se cruzavam, todas as janelas se abriam apesar do calor, os que faziam a sesta foram acordados e assombrados, as portas das lojas se encheram de caixeiros, os jogadores de bilhar pararam de carambolar, toda a cidade ficou vendo-o fora de uma quarta-feira de cinzas, por acaso a banda Siri-na-Lata vinha descendo para um enterro de pessoa importante, o antigo Major da Guarda Nacional Rogaciano Mendes de Assunção Pereira, mas não teve conversa, atacou Não puxa Maroca no Rabo do Gato, os moleques que acompanhavam a banda entraram num passo puxado, ele no meio, imóvel, apoiado na bengala, alheio, um dos moleques mais ousados teve a ousadia de puxar-lhe o paletó, logo um uivo de dor, a bengala retorcida atacara como uma cobra, caminhou e todos abriram, os instrumentos foram desafinando, somente o trombone insistia, o músico de olhos fechados, floreando, de repente sentiu-se só e abriu os olhos para vê-lo dobrando a esquina mais próxima.    

    Quando acabou de subir a ladeira estava um pouco arquejante.  O Alto do Lenhador completamente vazio àquela hora, apenas o boteco de Guará mantinha as portas abertas, mas sem freguês, as mulheres dentro de casa que a noite ainda estava longe para o fuá. Parou um instante, olhando para um e outro lado, indeciso, com a bengala traçou uns sinais esquisitos no chão de barro duro, ressequido, levantando poeira, decidiu-se pelo casario da direita, caminhou na calçada de tijolos, de vez em quando erguendo a cabeça para ler os números escritos a tinta preta, tirou um papel do bolso, quem olhasse por cima dos seus ombros haveria de ver os mesmos sinais que ele esgravatara no chão.  Parou no 86, bateu na porta, esperou, nem sinal, bateu novamente, ouviu qualquer coisa resmungada lá de dentro, bateu com a bengala retorcida, já vai, e logo depois Doninha-Cu-de-Pato abriu a folha superior, a porta dividida em duas, ele tirou o chapéu e cumprimentou-a, curvou-se para o lado de dentro e puxou o ferrolho da folha inferior, Doninha recuou, estranhada, que é que o senhor quer ?, com a ponta da bengala retorcida ele a foi empurrando pelos peitos, Doninha só tinha mesmo uma camisinha que mal lhe cobria o corpo moreno, carnudo mas enxuto, tudo mostrando em sombras; instintivamente, de costas, recuando, foi para o quarto, ele a empurrou de vez para a cama onde ela caiu, e ali ficou, ele se despindo vagarosamente.  As costelas apareciam como as de um esqueleto, as coxas eram tão finas quanto taquaras, não tinha um pelo no corpo, inclusive no púbis, o pênis duro não seria maior que um dedo indicador.  Doninha-Cu-de-Pato foi a única pessoa que o ouviu falar, e ele falou em tom ao mesmo tempo queixoso e pedinte : Eu quero.  A mulher, compadecida, livrou-se da camisinha, abriu as pernas, chamou-o com os braços estendidos,  só então ele largou a bengala retorcida com que fizera malabarismos enquanto se desnudava contanto que da sua mão ela não saísse, caminhou para a cama, deitou-se em cima da mulher, foi introduzido pela mão hábil, ficou parado, ela mexeu-se, ele gemeu baixinho, depois mais alto, correspondeu ao movimento, gritou, ela sentiu seu líquido, ele ficou inerte, ela deixou, esperou, não sentia seu coração, seu hálito, seu calor, empurrou-o, ele estava com um sorriso parado, os olhos abertos, ela reparou que eram verdes, e verde foi ficando todo o seu corpo glabro e alvo, alvo e verde, verde, cada vez mais verde, um calango, pensou ela, e começou a gritar, e gritou mais ainda quando viu aquela mulher gorda, alvíssima, de cabelos brancos e olhos azuis, na porta do quarto.   

   


Transcrito do livro O GENERAL ESTÁ PINTANDO (contos), de Hermilo Borba Filho – Editora Globo, Porto Alegre, RS, 1ª. edição,1973.