Teatro


HERMILO BORBA FILHO 

Teatro Selecionado – Volume I
(Electra no Circo, João sem Terra, O Vento do Mundo, Auto da Mula-de-Padre)

ELECTRA NO CIRCO

(Tragédia)

FIGURAS DA PEÇA
Mestre – de – Cerimônias
A Voz
A Moça do Arame
O Homem Lagarto
Os Serventes
O Palhaço
O Rapaz do Trapézio
O Dono do Circo
O Domador
Os Meninos Pobres
O Menino Rico
A Cantora
A Equitadora
Os Músicos
As Seis Mulheres de Preto
O Primeiro Médico
O Segundo Médico
A Enfermeira
O Homem de Branco
Os Sete Juízes
A Mulher de Branco   

PRIMEIRO ATO

Antes  do Espetáculo

Quando a sala do teatro estiver cheia e forem dadas as três pancadas de estilo uma banda de música, dentro do palco, romperá um dobrado. Aos últimos acordes da música surge na ribalta o MESTRE-DE-CERIMÔNIAS. Trajo característico. Casaca. Luvas. Cartola. Bengala à mão. As luzes da platéia se apagam e, no palco, o MESTRE-DE-CERIMÔNIAS movimenta-se dentro de  círculo luminoso.   

MESTRE-DE-CERIMÔNIAS – Respeitável público. Dentro de alguns minutos apresentaremos os números sensacionais do Grande Circo do Mundo. Não direi que haja feras. Não. Não direi isso. Vou até decepcionar a distinta platéia dizendo que não há feras.   

A VOZ – E que é que esse circo tem ?

MESTRE-DE-CERIMÔNIAS – Homens e mulheres, respeitável público. Muitos homens e muitas mulheres. Todos eles sofrendo, amando, rindo, chorando.  Um espetáculo, respeitável público, um espetáculo ! Nem sempre vocês têm, a preços tão razoáveis, cenas como essas.  Grandes acontecimentos vistos a uma nova luz. Grandes dores estranguladas por uma gargalhada brutal. Apenas um pouco de vida do Grande Circo do Mundo.  E vai começar a função ! Vai começar ! Música, maestro !

(A banda ataca o mesmo dobrado e o pano de boca vai-se descerrando lentamente. Cena escura. É a sala de espera para a entrada no picadeiro. Não há móveis. À esquerda é constituída por uma grande cortina vermelha, dividida em duas, que dá acesso ao picadeiro. Ao fundo direito, outra cortina já gasta, completamente descerrada, leva ao interior, onde os artistas se vestem. A cortina da esquerda, meio entreaberta ao centro, por onde entra luz mais forte, deixa ver uma parte da platéia do circo. Na parede do fundo estão dependuradas várias coisas : um casaco vermelho, um instrumento de música, um gorro verde. No chão : dois halteres, uma grande bola azul para o cachorro equilibrista, uma caixa vermelha e branca, um bombo amarelo. Ao abrir-se o pano, o MESTRE-DE-CERIMÔNIAS atravessa a cena e desaparece pela cortina do fundo direito. Pela porta do teatro entram, andando pela passadeira que divide as cadeiras, A MOÇA DO ARAME e O HOMEM LAGARTO. Sobem para o palco por escadinhas laterais e a cena se ilumina.)

A MOÇA DO ARAME – Não acha que chegamos muito cedo ?

O HOMEM LAGARTO (Faz sinal negativo com a cabeça.)

A MOÇA DO CIRCO – O que eu não daria para estar hoje longe do circo…

O HOMEM LAGARTO  (Espanta-se como se a moça houvesse dito uma barbaridade e entra para trocar de roupa.)

A VOZ – Hoje, mais do que nunca, os meus pés estão pesados. Sinto-os como parte independente do corpo.   

(Ouve-se a voz d’O HOMEM LAGARTO trauteando uma canção qualquer.)

A VOZ – Os pés estão pesando como se fossem de chumbo. Que pressentimento ! Eu não posso continuar a viver assim. É como se sentisse alguém ao meu lado… (Pausa.) Os meus pés estão pesando… estão pesando… Como posso andar no arame ? E logo hoje, que vai estrear o meu novo companheiro…

(Ouve-se uma gargalhada d’O HOMEM LAGARTO. Entram vários SERVENTES,  por todos os lados. Transportam coisas para a cena, tiram outras, e saem, sempre em movimento. Enquanto se movimentam, falam.)

PRIMEIRO SERVENTE – Muito tempo que não há desastre no circo…

SEGUNDO SERVENTE – Não me lembro de nenhum.

A MOÇA DO ARAME (Subitamente.) – Ai ! Desgraçada de mim ! (Os SERVENTES param.) Muitos de vocês já estavam no circo quando o meu pai morreu. Eu me lembro perfeitamente.    

TERCEIRO SERVENTE (Para o primeiro.) – De que morreu o dono do Circo ?

PRIMEIRO SERVENTE – Não fale nessas coisas.

A MOÇA DO ARAME  – Eu tenho necessidade de falar. Preciso sempre recordar como o meu pai morreu. (Violenta.) Como mataram o meu pai !

SEGUNDO SERVENTE – Moça…

A MOÇA DO ARAME – Por que vocês têm medo de falar a verdade ? Por que querem ocultar a causa da morte do meu pai ? Acidente ? E se eu disser o que vocês já sabem, que não foi acidente ?

(Sussurra o coro dos SERVENTES.)

QUARTO SERVENTE – A gente não tem nada com essa história.  

A MOÇA DO ARAME – Sim, eu sei, ninguém tem nada a ver com essa história. Somente eu. Mas eu sou uma mulher. E que é que uma mulher pode fazer ? Esperar somente. Esperar por aquele que vingará o meu pai.   

QUINTO SERVENTE – Não seja tão exaltada nas suas palavras.

A MOÇA DO ARAME – Como posso suportar tanta injustiça ?  Como posso ver tanta abjeção ? A minha própria mãe ligada a esse assassino.

(Sussurro no coro dos SERVENTES.)

SEXTO SERVENTE – Não fale assim do domador. Ele é o dono do circo.

A MOÇA DO ARAME –  O dono do Circo ? O dono do Circo é o meu pai.

TERCEIRO SERVENTE (Como quem acalenta um menino.) – Mas ele está morto…

A MOÇA DO ARAME – Morto pelo Domador ! (Um ó de espanto parte dos SERVENTES.)  Assassinado ! E eu dependo do assassino do meu pai. E eu nada posso fazer. (Pausa.) E nada me revolta tanto quanto a conduta dessa mãe que dorme na mesma cama com esse homem.  Mas a hora da vingança há de chegar. Basta ver como ela treme quando se fala na volta do meu irmão. Porque o meu irmão há de voltar. Eu o esperarei.

PRIMEIRO SERVENTE – Posso falar com a senhora ?

A MOÇA DO ARAME –   Pode. Que é ?

PRIMEIRO SERVENTE – O seu irmão fala em voltar ?

A MOÇA DO ARAME  –  As cartas dele não dizem nada. Mas há de voltar.

(Da platéia estoura uma gargalhada canalha, uma gargalhada debochada. É O PALHAÇO.  Levanta-se e encaminha-se para o palco : cara pintada de alvaiade, boca rasgada até as orelhas, fantasia de pierrot. Quando anda, ouve-se o bimbalhar de guizos. E lá vai ele para o palco. Vai cantando.)

O PALHAÇO – Hoje tem espetáculo ?

OS SERVENTES (Levantam a cabeça como se ouvissem um chamado.) – Tem, sim senhor.

O PALHAÇO – Às oito horas da noite ?

A MOÇA DO ARAME (Lágrimas correndo pela face.) – É, sim senhor.  

O PALHAÇO – Hoje tem coisa boa ?

OS SERVENTES – Tem, sim senhor.  

O PALHAÇO – E o palhaço o que é ? (Silêncio. Ninguém responde.) E o palhaço o que é ? (Nada. Silêncio. E ele, já no palco, no proscênio.) Já se foi o tempo em que palhaço era ladrão de mulher. (Riso amargo.) E depois, como era mesmo o resto da canção ? (Aponta um cavalheiro na platéia.) Não se lembra ? Não ?  Faça um esforço. Vamos. Para que esse sorriso desconfiado ?  Não se lembra ? Pois eu lhe digo. (Com toda a força dos pulmões.) Grita, rapaziada da canela suja ?

OS SERVENTES – Ô ! Ô ! Ô ! Ô !

O PALHAÇO (Mal o grito se extingue cai num choro convulso. Pausa. Limpa os olhos  com as costas das mãos e diz:) – Ora, um palhaço chorando… Não é para isso que vocês vêm ao circo, é ? (Dá uma cambalhota e cai defronte d’A MOÇA DO ARAME.) – Que tristeza é essa ?

A VOZ – Os meus pés estão pesados… (OS SERVENTES vão saindo.)

O PALHAÇO –  O RAPAZ DO TRAPÉZIO ainda não chegou ?

A MOÇA DO ARAME – Ainda não. (Noutro tom.) Estou com um pressentimento…

O PALHAÇO (interrompendo-a.) – Não dê importância. Eu também já fui assim. Quando ia entrar no picadeiro tinha medo de não me lembrar das anedotas. Depois me acostumei.  

A MOÇA DO ARAME – Nunca senti isso antes. Desde que nasci que ando no arame, mas hoje estou com medo. Os meus pés estão pesados.  

O PALHAÇO – Vá mudar a roupa, vá. O seu companheiro não deve tardar.

A MOÇA DO ARAME – Pois bem, eu vou. (E já da porta.) – É bonito ele, é ?

O PALHAÇO – Quem ?

A MOÇA DO ARAME (Num sorriso triste.) – O meu companheiro… (E sai.)

O PALHAÇO (Tem um sorriso enigmático. Dirige-se ao público como se fosse falar. Hesita. Abre a boca, novamente. Decide não falar e fica com um ar pensativo.)

O HOMEM LAGARTO (Aparece já vestido. Uma roupa colada ao corpo, toda verde. Vê O PALHAÇO sorri e dirige-se a ele. Toca-lhe no ombro.)

O PALHAÇO (Voltando apenas a cabeça, sem nenhum gesto de surpresa.) – Ah, é você ?

O HOMEM LAGARTO (Sorriso afirmativo.)

O PALHAÇO – Já pronto para a função, hem ? Hoje vamos ter coisa boa. Para nós, não, tudo isso já está gasto. O público, porém, é uma verdadeira criança.  Gosta sempre das coisas velhas, desde que sejam bem apresentadas.  

O HOMEM LAGARTO (Faz sinal como quem diz : “É isso mesmo.”)

O PALHAÇO – Quando eu era menino,  como gostava de ver um palhaço de circo ! E ainda hoje quando às vezes estou de bom humor, rio tanto ao olhar a minha cara no espelho ! (Dá uma risada.)

O HOMEM LAGARTO (Também ri.)

O PALHAÇO (Parando bruscamente). O RAPAZ DO TRAPÉZIO está demorando, já era hora de estar aqui.  

O HOMEM LAGARTO (Sem dizer nada aponta para a entrada do teatro. O PALHAÇO não vê e continua falando.)  

O PALHAÇO – Temos tanto o que fazer e esse rapaz não chega. Terá acontecido alguma coisa ? Aposto que ele…

(Detém-se ao ver O HOMEM LAGARTO apontando para a entrada da sala de espetáculos. Acompanha o braço d’O HOMEM LAGARTO e, ao mesmo tempo em que a sua vista chega ao fim da viagem, todo o teatro se ilumina de vermelho. Na porta O RAPAZ DO TRAPÉZIO está parado. É um jovem de 20 anos, bonito, corpo de atleta. Veste uma roupa branca.)

O HOMEM LAGARTO (Desce o braço e dá sinal de satisfação.)

O PALHAÇO (Gritando para ser ouvido.) – Que está fazendo aí ? Vamos, venha pra cá. Está pensando que hoje não tem espetáculo ?

(O RAPAZ DO TRAPÉZIO vem andando muito sério, meio absorto. No meio da platéia, detém-se. Faz menção de voltar e ir embora. O PALHAÇO, do palco, estende o braço como que chamando. Ele levanta a cabeça, caminha para o tablado, sobe a escadinha lateral e entra no palco. Apaga-se a luz vermelha. O PALHAÇO e O HOMEM LAGARTO contemplam-se. Ele percorre toda a cena. Alisa uma parede, dá uma pancadinha no bombo, abre a cortina e olha o picadeiro. Uma pausa.)

O RAPAZ DO TRAPÉZIO –  Olhe eu aqui.

O PALHAÇO  – Já estava com cuidado.  

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Por quê ?

O PALHAÇO  –  Essa demora.   

O RAPAZ DO TRAPÉZIO  –  Fui ao cemitério. Precisava sentir a solidão que havia em volta do leito do meu pai.  A noite escura, a terra escura e o silêncio.  

O PALHAÇO  – E agora que já viu tudo isso veja o circo.  O Grande Circo do Mundo. É um circo enorme, esse que você tanto desejava ver. E muito velho, também.  Debaixo de sua coberta muitos dramas já foram representados, muitos homens já passaram. Todas as dores e todas as alegrias já desfilaram no picadeiro do Grande Circo do Mundo. Mas o Circo é sempre novo para aqueles que nunca o viram. Veja. Veja o circo. Daqui eu fugi com você quando seu pai morreu.  

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Quando meu pai foi assassinado.  

O PALHAÇO – Sim, isso mesmo. Quando seu pai foi assassinado.  Muita gente morreu debaixo das luzes desse circo.  Mas seu pai era o dono dele.  É uma morte imperdoável.  Como puderam matar o dono do Grande Circo do Mundo ?

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Como puderam ?

O HOMEM LAGARTO (Aproxima-se e a sua atitude traduz “Sim, como?”)

O PALHAÇO – Parece que ainda estou vendo a cena. Gente. Gente por toda a parte. O Circo estava cheio. Dinheiro. Muito dinheiro na bilheteria.  Alegria. Alegria no coração de todos os artistas. E nos bastidores conspirou-se o assassinato d’O DONO DO CIRCO.

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Miseráveis !

O PALHAÇO – À minha entrada as crianças quase enlouqueceram de tanto aplaudir.  O sucesso andava no ar. Palmas. Risos. Alegria. Muita Alegria. E de repente a dor.   

O RAPAZ DO TRAPÉZIO (Surdamente.) –  A dor…

O PALHAÇO – Ele entrou no picadeiro. O trapézio balançava no espaço como se estivesse dando um adeus.  Naquele noite ele ia voar do trapézio para a rede. Ei-lo que sobe. O público delira. A orquestra toca uma valsa lenta, quase em surdina. (Num soluço.)  Ó ! Ele era um ídolo ! (Cobre o rosto com as mãos.)

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Miseráveis !

O HOMEM LAGARTO (Dá as costas e vai para um canto, abatido.)

O PALHAÇO (Levantando a cabeça e enxugando os olhos.) – O seu corpo descreve círculos no ar.  O trapézio vai de um lado a outro do circo. Chegou o momento. É agora. A música pára. As mãos largam a barra de aço e o salto projeta-se mais para cima, mais para o alto, todo o público levanta-se e o corpo vem descendo, vem para a rede que se avizinha, cada vez mais próxima, cada vez mais próxima. Tocou a rede. E quando eu esperei que ela devolvesse o corpo, quando eu já sentia a tempestade de aplausos, ouvi o baque surdo do corpo contra o chão, um gemido que morreu na garganta e o corpo envolvido como uma coisa repelente, como uma coisa que se esconde.  

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – E depois ?

O PALHAÇO – Gritos, ataques, correrias. Mas o espetáculo continuou.  A rede preparada pelos criminosos já havia cumprido a sua missão.        

O HOMEM LAGARTO (Parece despertar e volta.)

O PALHAÇO –  Chegou a hora. Precisamos agir com rapidez. O público não demora a chegar.

O HOMEM LAGARTO (Corre a cortina que dá para o picadeiro. Olha e volta.)

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Me diga uma coisa : aquelas coroas mortuárias que estavam no túmulo do meu pai ?

O PALHAÇO – Aquelas coroas… a Equitadora mandou-as.

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Minha mãe ?

O PALHAÇO – Sua mãe.

O HOMEM LAGARTO (Faz um sinal afirmativo com a cabeça.)

O RAPAZ DO TRAPÉZIO – Minha mãe ?…

O PALHAÇO – Ela sonhou…

(Cena escura. A parede do fundo torna-se transparente.)

… que O DONO DO CIRCO  voltava…

(Através da parede aparece a Sombra d’O DONO DO CIRCO.)

… e  dirigia-se ao camarim…

(A Sombra avança.)

para trocar de roupa. Mas nesse momento…

(A Sombra pára)

… surgia O DOMADOR…

(Do lado oposto, a figura d’O DOMADOR.)

… que avança para ele gritando : “Você está morto !”

(O DOMADOR levanta o braço, com o dedo apontando para a Sombra.)

O DONO DO CIRCO olhava-o, respondendo : “Os mortos também sabem matar.”

(A Sombra avança.)

 


Trecho inicial do primeiro ato da peça ELECTRA NO CIRCO, de Hermilo Borba Filho, escrita aos 27 anos (1944), em parceria com Valdemar de Oliveira, e dedicada a Gastão de Holanda, Luiz Pandolfi e Haydn Goulart. Publicada em 1952, num volume intitulado TEATRO (Edições Teatro do Estudante de Pernambuco), contendo  também as peças A BARCA DE OURO e JOÃO SEM TERRA, ambas de autoria de Hermilo. Texto integral reeditado  no livro HERMILO BORBA FILHO – Teatro Selecionado – Volume I, organizado por Leda Alves e Luís Augusto Reis (FUNARTE / Ministério da Cultura / Governo Federal, Rio de Janeiro, RJ, 2007).