UM DESASTRE ORGANIZADO
Quando o meu amigo, o romancista Osman Lins, me viu seminu, no pós-operatório, depois de sair do Vietnam (nome que os próprios médicos do Instituto de Cardiologia de São Paulo dão à “Sala de Recuperação”), não se conteve diante das equimoses que se espalhavam por todo o meu corpo e exclamou : “Mas isto é um desastre organizado”. Dele, depois, saiu a ideia de transformar a minha experiência de operado do coração – o primeiro ficcionista brasileiro a passar por isto – num depoimento para REALIDADE.
O “Depoimento” foi publicado agora, no mês de julho. Mas o “copy-desk” teve de cortar muita coisa, inclusive coisas importantes, tudo para comprimir a matéria para o espaço de que dispunha.
Houve um corte drástico do nome de várias pessoas importantes, começando pelo de Osman Lins e indo aos dos meus amigos do Recife. Não quero que me julguem um mau amigo. Eis, integral, a matéria que foi cortada no que se refere ao Recife :
“… chega o nunca bastante louvado amigo do peito Renato Carneiro Campos, o cara mais inteligente da região, coisa que ele mesmo reconhece, já com os cartões impressos para uma AÇÃO ENTRE AMIGOS
Rifa-se, com as quatro finais da Loteria Federal, a correr no próximo sábado, o escritor Hermilo Borba Filho, com 53 anos de idade, suspeito de ter o coração cheio de amor, daí advindo o seu sofrimento, e o bolso vazio, isto agravando o referido sofrimento, podendo ainda, se salvo, escrever, por mais alguns anos, estórias tão boas como as que escreveu até agora. Roga- se às almas caridosas que contribuam para este ato de caridade cristã.
Os amigos não falharam e houve até brigas, quase um leilão, para ver quem ficava com o maior número de cartões. Conforme as posses, compraram de cinqüenta a nove mil, ao preço um unitário de um cruzeiro. Ei-los, os heróis, por ordem alfabética e não monetária. O que seria uma falta de delicadeza :
Abelardo Rodrigues, pintor, paisagista, colecionador, irmão de muito tempo; Alex Lomachinky, arquiteto, colaborou comigo no “Teatro Popular do Nordeste”, agora em liquidação por causas mil, uma das quais o meu estado de saúde; Ariano Suassuna, o maior dramaturgo da língua, dentro em pouco também o maior romancista, irmão de longa data; Artur Reynaldo Alves, palmarense como eu, o que quer dizer um sujeito decente; Geraldo Magalhães, então prefeito, que reconheceu haver este escriba prestado alguns serviços à cidade do Recife, encomendando-lhe para quando estivesse de saúde perfeita (foi uma jogada no escuro), um anteprojeto para a preservação das peças e monumentos de arte barroca existentes na Capital; Gilberto Freyre, o de Apipucos e do mundo, sabe-se lá por que não lhe deram ainda o Prêmio Nobel, o magnífico escritor de qualquer país; Hildo Zaicaner, manobrando madeiras de lei, odoríferas; Joel Pontes, dos idos do Teatro do Estudante de Pernambuco, amigo de coisas sérias, de comes e bebes, de adesões e sofrimentos; José Alves da Silva, contador de pulhas velhas, pai de Leo, que viria a morrer no meu pós-operatório, sempre na esperança do Elixir da Juventude; José Anchieta Alves, filho do dito cujo, comerciante por necessidade, caladão mas decidido, toma uísque mas defende o governo; José Berinson – vejam o meu prestígio com os judeus : nesta lista constam seis -, o das pescas submarinas, já foi boêmio no tempo de Hugo da Peixa e Valdemar Marinheiro (quem for do Recife sabe quem são estes dois), trata de negócios, periodicamente faz a volta ao mundo; José Carlos Cavalcanti Borges, dramaturgo, contista, já conhecido neste depoimento, inclusive pelo seu apelido, gargalhada franca, mesa farta, acreditando em teatro como pouca gente neste país; José Cláudio, pintor de pássaros e de nádegas, escritor de coisas próprias, sujeito pobre que nos surpreende com uma garrafa de “Chevas Regal”, sabe-se lá de onde veio; Leão Masur, de jantares na madrugada, o sujeito de gargalhada mais fácil que hei conhecido; Marcelo Carvalheira, padre pela graça de Deus, amigo, irmão, confessor, aquele que perdoa, em nome Dele, os meus gravíssimos pecados, o que não se escandaliza, o que já sofreu e o que vai sofrer, por Ele e pelos outros; Mickel Sava Nicoloff, também dos velhos tempos do Teatro do Estudante, ator sem graça naquela época, excelente advogado agora, “gourmet, bloge-trotter”, um dos dez mais elegantes; Murilo Guimarães, o Magnífico ; para um sujeito que só tem um ouvido como eu custa a entender o que ele diz; mas geralmente só diz coisas sensatas, aprendizado longo e sofrido de sua profissão de advogado, Reitor por injunção de consciência; Nassri Hazin, das pescas submarinas como o seu amigo do peito Berinson, o judeu, mirem-se neste exemplo, vocês que fazem a guerra no Oriente, podendo-se encontrar, além do calor humano, no seu bar do subsolo, os uísques da melhor qualidade e as latarias mais finas; Paulo Loureiro, o químico, analista de sangue de poetas, contador de histórias; Pierre Chalita – lá vem outro árabe de conversa hilariante e pintura sofrida, arquivista das coisas mais raras deste Nordeste, desde um brinco que pertenceu à amante de Henrique Dias a um pilão de marfim do Barão do Jenipapo, artista mesmo, se vocês não comprarem seus quadros agora, imediatamente, terão de comprá-los mais tarde – ou não comprá-los e chorá-los – a preços astronômicos; Renato Carneiro Campos, o “gourmet”, o bigodudo, o barbudo, o poeta, o “causer”, o brigão, o “blaguer”, o trágico, o comunitário : o homem; Sales Zaicaner, um daqueles que ao estalar de dedos de um amigo, faz coisas impossíveis : consegue um fiapo da barba de Moisés para lhe oferecer, rouba a Vênus de Milo para que você durma com uma mulher sem braços, traz o presidente Médici para comer seu modesto feijão com arroz; Samuel Hulak, o psiquiatra, já conhecido também de referência, mas não inteiramente: trata-se de um judeu muito mais inteligente do que até ele mesmo pensa, que sacrificou o teatro pela psiquiatria, que tem senso de humor, que tanto come com volúpia – quando não está fazendo regime – uma mão-de- vaca bem brasileira como o erótico “schwartz-pireshkes” que sua inocente mão faz com a maior propriedade; e, finalmente, Waldomiro Gomes, o gordo ímpar, jamais ausente para os amigos.
Foram estes que mandaram um pobre cristão para São Paulo…
(Diario de Pernambuco, Recife / 05 de maio de 1971)
O APOLO
Avisou-me Jessiva Sabino, a inteligente e eficiente bibliotecária do Clube Literário de Palmares, que o Cine Teatro Apolo completa sessenta anos de atividades ininterruptas agora em dezembro próximo, fato que me parece único pelo menos aqui em Pernambuco.
Faço um apelo ao pessoal proprietário do Apolo para que comemore, como merece, essa data, que o Apolo foi muito importante para várias gerações de palmarenses.
Para mim, particularmente, o Apolo agiu como elemento cultural e poético. Quando Violeta, minha irmã mais velha, ia ao Apolo assistir aos filmes de amor (assim chamados em oposição aos de mocinho e vilão), falava no acontecimento desde a manhã até a hora da sessão. Eu passava em frente ao Apolo e via os cartazes em grandes letras azuis, com fotos brilhantes, mostrando homens de casaca e mulheres de ricos colos nus descendo de fiacres parados diante do palácio. Durante a semana, minha irmã falava de Pina Menichelli, Theda Bara, Sessue Hayakawa, enquanto eu seguia Fanhim, um deixa-que- eu-chuto, que levava os cartazes a vários pontos da cidade para admirar as fotos, em sépia, do filme em série. Vi muitos : “A Moeda Quebrada”, “A Mancha Rubra”, O Cavaleiro das Sombrasd”, “O Punhal Maravilhoso”, “Os Quatro Agentes do Serviço Secreto”, sei lá, imitando Jack Perrin, William Desmond, Eddie Polo, Elmo Lincoln e até já me vesti um dia de Pearl White. Eu ainda não completara seis anos e já ganhava minha pratinha de quinhentos réis para ver a fita, sempre acompanhado pelo meu querido Olho-de- Sete-Topadas que, sendo mais velho, já sabia ler e lia para mim os letreiros dos filmes mudos, comentados musicalmente por Dona Ester no piano, Possidônio na clarineta e Luís Germano no rabecão.
Era um mundo fantástico que nós copiávamos em bandos : no rio, nos montes do outro lado, nos sítios, nas brigas de bodoque, nas casas abandonadas, cada um de nós era bandido, era mocinho, cada menina era a mocinha, era a falsa, foi quando, já depois, lendo atravessado graças ao Professor Pinho, quis representar, seguindo direitinho o enredo, “O Homem que Ri”, de Victor Hugo, tarefa impossível porém precursora de tudo o que eu viria a fazer em teatro.
E teatro veio, também no Cine-Apolo. Miguel Jasselli (sem dúvida a grande e primeira influência cultural que recebi em minha então puberdade) fundou a Sociedade de Cultura de Palmares, formou um elenco de amadores e passou a representar peças sobre peças no Apolo, em dias em que não havia filmes. Isto aconteceu em 1932, eu tinha 15 anos, tudo continuava a ser um encantamento, a ligação ao grupo me parecia uma aventura extraordinária – e era – e como sabia ler muito bem fui designado para ponto de espetáculos. Depois, quando subi à condição de galá, em certas peças, que era suplantado quase sempre pelos meus primos Tancredo e José Accioly Lins, quem me substituiu foi Enoch de Barros Freire, enquanto eu, empático, chorava no palco, tremia a voz, representava com um naturalismo digno de Antoine, causando arrepios e lágrimas. E eram os amigos mais velhos, sobretudo Lelé Correia e Raimundo Alves de Souza, e eram os primos e as primas, sobretudo Celina e Zezé, e eram as namoradas, e era o mundo belo de uma arte menor mas de qualquer modo uma arte, e era o repertório : as comédias de costumes cariocas e pernambucanas, as burletas, as comédias musicadas, os atos variados. E era, com Miguel Jasselli (diretor, autor, ator), a preparação do cenário e o arranjo dos pertences de cena, durante as tardes, no antegozo da noite de estréia, a platéia cheia, os aplausos, a ante-sala da alegria e da tristeza que se misturaram durante toda a minha vida através do teatro, uma desgraça como outra qualquer, uma marca, a marca do Cine-Teatro Apolo na década de trinta, ida sem volta, jornada já agora dos mortos.
(Diário de Pernambuco, Recife / 21 de novembro de 1974)
Crônicas transcritas do livro LOUVAÇÕES, ENCANTAMENTOS E OUTRAS CRÔNICAS, de Hermilo Borba Filho (Fundação Casa da Cultura Hermilo Borba Filho / Edições Bagaço, Palmares / Recife, 2000). Edição póstuma organizada por Jaci Bezerra, Leda Alves e Juareiz Correya.