Novelas

OS AMBULANTES DE DEUS 

 

1º. ano :  a nuvem

Quem fez a boca do homem ?
Ou quem formou o mudo e o surdo,
o que vê e o que é cego ?

ÊXODO, IV – 11

    A corrente da jangada estava de cadeado no mourão plantado à beira-rio, ainda não chegara ninguém, não levaria menos de cinco, eram ordens, as vasilhas de leite já vazias a um canto, fumando para matar o tempo, uma ou outra mosca, não eram horas de mosquito, ninguém com quem falar, também era muito cedo, lá para os lados do Poço do Xenxém, muito antes aliás, porque no poço mesmo ninguém nem não tomava pé, dois homens nus jogavam pazadas de areia pra cima duma jangada; mais pra baixo, do lado esquerdo, umas lavadeiras, banda da cidade; e só : sem se contar as andorinhas em vôos rasantes, a casa-grande do Engenho Paul nos seus brancos e marrons de janelas fechadas, a estrada limpa, um cambiteiro quase dobrando a curva do caminho, som de vozes que nem chegavam a ser entendidas.   

    Cipoal estava de olhos fechados por causa da fumaça do cigarro que lhe entrava pelas ventas, pensando no que lhe acontecera naquela manhã, às quatro e meia, ainda sem sol, quando viera trazer o leite : puxando à mão o arame que, ligando uma margem à outra, fazia deslizar a jangada, de repente, ainda na semi-escuridão , dentro dágua, aquele brilho prateado, fugitivo, talvez fosse até somente o seu piscar, mas não : parou a jangada e, imóvel, viu quando o brilho se repetiu, no mesmo lugar, era um peixe.  Pegou a corrente com a argola, passou-a no arame, ficou à espera, a luz já um pouco maior, menos trevas, acocorado ele, já no bote, useiro e vezeiro nas artimanhas do peixe naqueles anos todos de travessia : o peixe brilhou, obra de dois palmos bem medidos junto com a luz ascendente e ele lá foi, ao peixe, bote certo : escorregadio, escamoso, áspero e visguento, sustentou-o também com a outra mão, o corpo balanceando no equilíbrio imperfeito, os dedões dos pés fincados na borda da jangada, quase arroxeados, era ali, neles, toda a firmeza, dedos enfiados nas guelras, obra de palmo e meio bem contado o peixe, vidroso, nos estertores do ar e da morte, no ar e na água ainda, foi Cipoal e jogou-o dentro da jangada, bateu nos paus, na reentrância de dois deles ficou encravado, como faca, olhando-o bem não era peixe de rio, foi o que viu, devia ser o tal do tilápia, de açude, mas que açude vazara ?, bom, não era notícia para a ocasião, sustentou-o com o pé nu, ele nos estrebuchamentos aos poucos se foi, com pouco mais duro era, se fora ?, não se mexera, voltara à vida, era assim, ia e voltava, vira e mexe e lá estava o tilápia batendo, ruído entre fofo e áspero de pau e água, Cipoal nem pensou, só foi esvaziar um dos vasilhames do leite, não ia perder peixe tal, queria esmiuçar seu sabor, jogou-o no canjirão, lá no fundo batendo ficou, tocou a jangada, chegou à margem, deixou o canjirão meio mergulhado nágua para o peixe não esturricar com o sol, se foi à distribuição do leite e quando voltou já eram três, os tilápias, todos os três nos vaivens, nas batidas, aos saltos, multiplicaram-se para quatro cinco seis, os de cima já esborravam, caíam nágua, desapareciam, ficavam os de baixo, nas forças sem astúcias, Cipoal desfez a rodilha de carregar os canjirões na cabeça e tapou a boca do vaso, o pano subia e levantava com a marrada dos peixes, arrancou-o de uma vez, não se continha, que se vão, merda, se foram, só ficou mesmo no fundo do canjirão o primeiro deles, já inteiriçado, duro como uma pedra esponjosa, agarrou-o, jogou-o no rio, boiou, Cipoal sentou-se, acendeu o cigarro e ficou à espera dos passageiros, cinco.  

    Esperou, sol subindo, gosto de zinabre na boca, acocorado com o apoio nos dedões dos pés, olhos fechados, cigarro apagado na boca, na espera, ouvindo a mesma gaiatice repetida :

Oi-oi-oi

Essa negra

Tá de boi.

    E a gargalhada, esta junto, despertando-o só fez abrir e erguer os olhos, sem mudar de postura, estava junto, ela, já a conhecia de outras vezes, perfumosa e sedosa, era : Dulce-Mil-Homens, bem trinta de aparência  ainda não passara dos vinte, coisa de agüentar homens e noites indormidas, isto envelhece, foi no que pensou Cipoal, enquanto a mulher se sentava junto, aparecendo os joelhos luzidios :

    – Ei, Cipoal.

    – Ei – ripostou.

    E ficaram, na espera, isto não se sabe por quanto tempo, incapaz de se avaliar, somente se analisar, o rio corria e a jangada oscilava, Dulce-Mil-Homens nos devaneios da vida, os famosos embates da vida de que lhe falava o pai, seleiro no outro lado do rio, para onde ia, na folgança de uma semana sem abrir as abençoadas pernas, não tinha do que se queixar a rigor, gozadora por natureza, de três em três meses no porém do descanso, nada melhor que a dita cuja casa do pai, ele sozinho, a sombra e a comida, as noites acalmadas.  

    Na pedra mais próxima, meio dentro dágua, um aruá se despregava, visguento, deixando a gosma avermelhada no rastro, corria para quê ?, Dulce-Mil-Homens cutucou Cipoal apontando para o aruá, Cipoal indagou :  

    – Que é ?

    – Pra onde ele vai ?

    Cipoal só levantou os ombros.

    – Quanto tempo  vive ?

    – O tempo da panela.  

    Dulce-Mil-Homens deixou passar, queria conversa, perguntou :

    – Tem medo de morrer, Cipoal ?

    Ele tirou o chapéu, sacudiu-o, cuspiu o goia.

    – Não. – Refletiu, coçou o pescoço. – Não de mesmo. – Parou mais um instante. – Acho que não, é no que tenho pensado, veja : quando a gente nasce encontra todo mundo rindo, contente, a gente não, a gente chorando, de tristeza deve ser.  Quando a gente morre todo mundo está chorando, triste, então com certeza a gente está rindo, contente, sem querer mais nada com o mundo.

    Dulce-Mil-Homens só riu-se, Cipoal levantou-se, foi à beira do rio, molhou os pés, curvou-se, lavou-se, de mãos nos rins espreguiçou-se pra trás, todo entortado, repetiu os versos da cantiga que ouvira : Essa negra tá de boi; olhou em volta, na ladeira apontava, vinha descendo, Cachimbinho-de-Coco, afamado folheteiro, falante em versos, com certeza iria para a casa-de-farinha do Engenho Paul, pensou Cipoal, que começava a safra com beiju e cachaça, dança. Quando o poeta freou, no pé da ladeira, erguendo a mão, solene, para Cipoal, voltou-se para Dulce-Mil-Homens :

– Meus olhos estão vidrados

Na volúpia do passado.

    Dulce-Mil-Homens só fazia rir, olhando a outra margem, obediente ao regulamento, sem estrilar. Tinha de esperar, esperava.  Cachimbinho-de-Coco descansou a pesada maleta no chão, foi também à beira do rio e ao lado de Cipoal, acocorando-se, lavou cuidadosamente as mãos, nelas esfregando areia, dando brilho no aro de um anel de pedra encarnada. Cipoal estava de pernas abertas olhando para o nada e Cachimbinho-de-Coco começou, de garganta,  boca fechada, a entoar uma valsa chorosa, já passada na lembrança.  Dulce-Mil-Homens viera juntar-se aos dois, de pés na água, olhando as cundungas, abaixando-se tentou colhê-las nas mãos em concha, Cipoal riu :

    – De que está rindo ? – indagou.

    Cipoal também acocorou-se e espadanou água, as cundungas fugindo e logo voltando.  

    – Ninguém pega – disse. – Só com uma peneira.

    Dulce-Mil-Homens ficou escutando. – Eu já peguei uma, uma vez, meio arroxeada a bichinha, peguei mesmo aqui na concha da mão, fui, levei pra casa, botei dentro da jarra, com poucos dias tinha perdido o rabo e era do tamanho de uma rã, no fundo da jarra, sem se mexer. Eu me esqueci, até que notei a água saindo verdosa, aí fui de novo, cascavilhei, sentado no fundo estava um cururu verde que não tinha mais nem tamanho.

    Dulce-Mil-Homens riu mais alto. Cipoal olhou-a meio estranhado.

    – Não é nada não – disse a mulher.

    Cachimbinho-de-Coco voltou-se, na mesma posição, a areia escorrendo entre os dedos :

– História bonita esta

Para a minha poesia.

    Dulce-Mil-Homens dá um lance : as coxonas. Disse, falando para Cipoal mas se referindo a Cachimbinho-de-Coco :

    – Esse homem é um pensamento.  

    Cachimbinho-de-Coco gostou, deu uma risada e levantou-se, declamando :

– Quem escreve é como a abelha

Que é quem menos come mel.

    Foi quando ouviram o grito :

    – Olha a vaca !

    Voltaram-se e viram :  vinham descendo a ladeira Amigo-Urso bicheiro afamado e Nô-dos-Cegos, de braços dados, quase no escorrego, às gaitadas :

    – Amigos, amigos – falou Amigo-Urso – quem vai ? quem vai ? quem faz sua fezinha ? Vaca nos dois zeros é coisa pra desejar.

    Ajudou Nô-dos-Cegos a sentar-se, informando :

    – Aqui estão, minha amizade, Cipoal, o bravio jangadeiro, a doce Dulce e o periclitante Cachimbinho-de-Coco, tudo gente da boa.  

    Nô-dos-Cegos, sempre de cabeça para a frente, os olhos protegidos por óculos escuros, já estava acostumado àquele leve balançar de cabeça, estendendo a cuia.

– Você só não vê a alma

Porque está escondida.

    Versejou Cachimbinho-de-Coco aproximando-se dos dois. E mais :

– Pra onde se botam os amigos ?

Se é que posso saber.

    Amigo-Urso acendeu uma Está-na-hora amparando o fósforo com a outra mão em concha, apagou-o na aragem, baforou:

    – Eu me boto pra casa-grande, fazer a fé do dia.

    Nô-dos-cegos também respondeu logo :

    – Casa da filha, que colchão é descanso do corpo.    

    Riram os três, sabendo do verso. Numa só corda, desafinada, da viola, Nô dos Cegos cantou um verso :

– Meu senhor da cara chata…

    Dulce-Mil-Homens, erguendo-se, ocultou as coxas :

    – Não quero essa cantoria nem !

    Voltaram a rir, todos, Cachimbinho-de-Coco declamando :

– Vamos embora, Cipoal,

Que o sol está lá no alto.

    Cipoal nem se virou, só disse :

    – Falta um.

    Coincidindo com o aparecimento de Recombelo no alto da ladeira. Dulce-Mil-Homens já o conhecia, bateu palmas, os outros se voltaram, Recombelo berrou :

    – Cheguei, cheguei, estou chegado.   

    Cipoal montou na jangada, tirando a chave do bolso para abrir o cadeado do mourão.  Amigo-Urso conversava com Recombelo :

    – Chegou de viagem ?

    – É, o caminhão só parte amanhã.   

    – Pra onde ?

    – Feira de Santana.  

    Cachimbinho-de-Coco aproximava-se :

– Calunga de caminhão :

Dá cartas, joga de mão.

    Recombelo tomou a jangada. Os outros o seguiram, Cipoal já estava com o arame na mão, a jangada jogando um pouco, à espera de que se arrumassem, o que faziam sem maiores pressas.  Dulce-Mil-Homens pôs a bolsa de lado, abriu a cama de campanha e ajeitou-a na proa, olhando a outra margem que se mostrava um pouco enevoada, enquanto Cachimbinho-de-Coco estendia o cordão de uma vara para outra, de proa a popa, começando nela a pendurar os folhetos, cantarolando baixinho sem letra, mas com música, sabida de todos : a de acompanhar rimances.  Amigo-Urso, já sentado numa banqueta, bem no meio da jangada, abria os talões e com um canivete amolado ia fazendo a ponta dos lápis, ao passo que Nô-dos-Cegos, puxando mais o chapéu para cima dos óculos escuros por causa do sol mais forte, sentava-se de pernas cruzadas, na corda só da viola, como sempre, continuando :

– Meu senhor da cara chata, Perna de urubu cangueiro…

    Não foi adiante. Recombelo procurava como armar sua rede, não vendo jeito, desistiu, fez uma trouxa e colocou-a ao lado da cama de Dulce-Mil-Homens,  nela deitando a cabeça, à maneira de travesseiro, perguntando para a mulher :

    – Quanto ?

    – Em viagem não é nada. – Riu, ele também. Ela perguntou : – Pra onde te botas ?

    – Vou em casa, depois de um tempão.   

    – E como é que quer ?

    – Que tem ?

    – Guarde a goma para a sua mulher.  

    – Tem que chegue e sobre – afirmou, rindo mais alto.  

   Cipoal gritou :

    – Lá vamos nós, que é dia de Natal !

 

 


Trecho inicial da primeira parte da novela OS AMBULANTES DE DEUS, de Hermilo Borba Filho (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, RJ, edição póstuma, 1976)