ORIGENS – História do Teatro
Capítulo 1
Martha Fletcher Bellinger (1), descrevendo o nascimento do teatro, fala-nos de uma virgem coberta de flores, debaixo de um céu azul, correndo descalça pelo campo, à procura de um companheiro. Vários homens aparecem, mas ela os recusa e continua a correr, sempre recusando-os, embora tragam-lhe pássaros azuis como presente. O quadro se modifica com o aparecimento de outras virgens que capturam os belos mancebos e começam a correr com eles. A primeira virgem dá um grito e aceita um dos jovens para companheiro da sua vida.
Desta descrição podemos concluir que o teatro nasceu da dança, dessa forma rudimentar de poema dramático representado sem costumes, sem música, luzes de ribalta ou cenário, o que equivale a dizer que a própria natureza servia de quadro para o esboço de enredo que acabamos de descrever, aliando-se em sua forma pura às aspirações de atores, nesse desejo peculiar à alma de viver outros papéis que não o seu próprio.
Estudando esse período, Edouard Shuré (2) afirma que o homem ainda não podia exprimir com palavras o que sentia de mais profundo e que as sensações nele produzidas pelo espetáculo da natureza eram traduzidas pela dança.
O homem, no entanto, sentiu sempre a necessidade de transformar a sua existência pela mentira do espetáculo e da ficção, o que quer dizer que o teatro é tão antigo quanto a própria vida e o sentimento da representação vive dentro de nós, presente em todos os nossos atos. Aqui cabe a distinção que podemos fazer entre o instinto teatral e o espetáculo propriamente dito, este último com o antecedente do drama inconsciente.
Um teórico russo (3), estudando o instinto teatral, leva a sua teoria ao exagêro de procurar explicações teatrais não somente no homem, mas até nos animais e nas plantas e apresenta todos os nossos atos cotidianos, os mais comuns, como derivados exclusivamente do instinto teatral. Deixando de parte o exagero de Evreinoff no que se refere à generalidade dos nossos atos em função do teatro, não podemos deixar de reconhecer que o homem, realmente, possui, latente, o desejo de transfiguração. Daí a nossa afirmativa de que o teatro é tão antigo como o próprio homem. Diz Evreinoff (4) :
“O homem possui um instinto com relação ao qual, a despeito de sua inesgotável vitalidade, nem os historiadores, nem os psicólogos, nem os que se ocupam da estética, disseram jamais, até aqui, a menor palavra. Refiro-me ao instinto de transfiguração, ao instinto de opor às imagens recebidas de fora, as imagens arbitrárias criadas no íntimo, ao instinto de transformar as aparências ofertadas pela natureza em alguma outra coisa…, numa palavra, ao instinto cuja essência se revela no que eu chamo a teatralidade.” E mais adiante : “O instinto de teatralização, que reivindico a honra de haver descoberto, pode achar sua melhor definição no desejo de ser diferente, de realizar algo diferente, de criar um ambiente que se opõe à atmosfera de cada dia. Eis aí um dos principais motivos de nossa existência e do que chamamos progresso, mudança, evolução, desenvolvimento, em todos os domínios da vida. Nascemos todos com este sentimento na alma, somos todos seres essencialmente teatrais.”
Abandonando a exposição da teoria do instinto teatral no homem, devemos pesquisar aquelas primeiras manifestações que, embora muito remotamente, tinham como finalidade organizar um espetáculo teatral. Aqui cabe uma digressão maior em torno daquilo que alguns teóricos classificam como “o drama inconsciente”.
Voltamos, assim, a estudar a dança como origem do teatro e anotamos, de início, as palavras escritas por Henri Gouhier (5) :
“Ele – o homem – se entrega também com toda a sua alma. O movimento é intenção. O gesto é pensamento. Dizer que o teatro nasceu do movimento e do gesto, é dizer que em sua origem se encontra o ato em sua unidade, espírito e corpo. O ato reflexo é sentido no mesmo momento em que acaba. O ato refletido é visto ao mesmo tempo em que é desejado. O teatro é filho da dança: o dançarino sabe que dança e por que dança. O movimento que é a origem do teatro não é o das nuvens nem o dos pássaros, mas o do homem que dança para seus deuses”.
As danças primitivas, eram, sem dúvida, uma história contada por meio de imitação, sem música, valendo-se o homem, apenas, do ritmo do próprio corpo em movimento, visualizando um acontecimento que se relacionava, na totalidade dos casos, à natureza, aos deuses ou à guerra. Se atentarmos no fato de que toda peça é composta de dois elementos – o literário e o de imitação – localizaremos, nas danças primitivas, o último destes elementos. O primeiro é uma conquista mais recente, realizada pelo homem na arte do espetáculo, quando o drama se tornou consciente, e se dirigiu a um público.
“O teatro propriamente dito nasceu na Grécia, mas suas origens remontam à mais longínqua antiguidade e ainda hoje pertencem ao terreno da hipótese. Segundo esta, seu nascimento se produziu como uma derivação das danças mágicas, dos exorcismos e representações mímicas realizados pelos feiticeiros e magos das tribos primitivas com a finalidade de afugentar os maus espíritos, o que procuravam conseguir combatendo-os com suas próprias armas fantasmais, isto é, disfarçando-se e pintando o rosto para assustar assim às divindades adversas e fazer com que elas deixassem em paz os homens. Tais conjuros tomaram depois uma forma e esta forma – a pantomima – sujeita a certos cânones impostos pelo costume, ou de caráter ritual – adquiriu um ritmo. Forma e ritmo, unidos já de maneira indissolúvel, passaram a constituir a dança” (6).
Esta descrição sucinta feita por Javier Farías, do aparecimento do teatro ainda como drama inconsciente, não nos satisfaz totalmente e, por isto, tentaremos dar uma idéia mais exata do fenômeno plástico das danças, da arte da imitação, da essência do próprio teatro, estruturado mais tarde pelo aparecimento do elemento literário, que se ligou ao movimento.
A dança descritiva é uma das mais remotas manifestações artísticas inconscientes do homem, germe da arte teatral, mesmo quando se relacionava ao espírito religioso, à guerra, à natureza, aos alimentos. Imitando o movimento dos animais, o homem procurou captar, não somente a sua aparência, pelos gritos e pela fabricação de máscaras, como também o seu espírito, baseado na idéia da reencarnação dos guerreiros nos corpos das bestas. Acreditando que um acontecimento passado voltaria se fosse imitado, o homem atingiu o segundo degrau da dança ritual, principalmente em relação aos elementos da natureza. Desejando que chovesse, o homem primitivo balançava uma árvore para imitar a força do vento, rolava pedras para produzir o som do trovão, e derramava água pelos campos. Desejando a morte de um inimigo construía um boneco que a este se assemelhasse, com quem entrava em luta, ferindo-o.
O ritual que precedia às guerras deu margem, também, à representação inconsciente de pantomimas, na suposição de que o fato imitado anteriormente ao seu acontecimento, provavelmente teria lugar. Estes rituais, na maioria das vezes, se compunham de fatos isolados, como podemos observar em gravuras de vasos antigos, mas, em certas ocasiões, adquiriam um enredo, como no caso de uma dança de guerra de Sumatra, com situação dramática, citada por Martha Fletcher Bellinger (7).
A pantomima tem lugar a alguma distância do lugar onde a batalha está acontecendo. A dança é executada por um único bailarino. Ele está sozinho, num certo lugar, quando é atacado por um inimigo. Procura defender-se de qualquer modo, e a luta prossegue, ora com a sua vantagem, ora com a vantagem do inimigo. Enfim, consegue dominar o adversário e degola-o. Agora já pode ver o seu rosto, levantando a cabeça decepada e reconhece o seu próprio irmão. Segue-se uma série de movimentos que traduzem desespero e remorso.
Outro exemplo de drama inconsciente vamos encontrar numa dança egípcia, atualmente classificada como o Drama da Paixão Egípcia. É a luta entre Osíris, o deus da luz, e Set, o deus das trevas, representada à noite nas proximidades do templo de Sais. Osíris se vestia de branco, e por essa ocasião já existia acompanhamento musical para essa espécie de pantomima. Set consegue matar Osíris, mas Hórus, filho de Osíris, vinga a morte do pai numa sangrenta batalha. Após o combate, Osíris ressurge. Estamos diante do simbolismo do Dia e da Noite ou diante do Espírito do Bem e do Espírito do Mal.
Estas danças mais complexas, já com uma base dramática mais definida, eram acompanhadas de instrumentos de percussão para o ritmo, além da participação da assistência com gritos e palmas. O próximo degrau foi o canto e o aparecimento de outros instrumentos musicais.
As danças acima citadas ilustram, embora ligeiramente, o fenômeno do drama inconsciente, origem da arte do espetáculo, e “muitas destas danças existiram muito antes da arte da escrita ser conhecida” (8).
As danças eram mais ou menos improvisadas, de acordo com a natureza do acontecimento que se desejava imitar, e pouca diferença havia entre a atuação dos bailarinos e o comportamento do público, devendo frisar-se, mais uma vez, os princípios dominantes desta manifestação artística : a luta do homem contra o destino, o sexo, a vingança, os elementos da natureza.
NOTAS
- (1) Bellinger, Martha Fletcher. A short history of the drama. Henry Holt and Company, Nova York, s.d.
- (2) Shuré, Edouard. Historia del drama musical. Editorial Schapire, Buenos Aires, 1945.
- (3) Evreinoff, Nicolas. El teatro en la vida. s.t. Ediciones Ercilla, Santiago de Chile, 1936.
- (4) Obra citada, pags. 41 e 42.
- (5) Gouriher, Henri. L’essence du théàter. Libraire Plon, Paris, s.d.
- (6) Farías, Javier. Historia del Teatro. Editorial Atlântida, S.A., Buenos Aires, 1944.
- (7) Bellinger, Martha Fletcher. Obra citada, pag. 5.
- (8) Bellinger, Martha Fletcher. Obra citada, pag. 8.
Primeira parte do capítulo 1, “Origens”, do livro HISTÓRIA DO TEATRO, ensaio de Hermilo Borba Filho (Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, RJ, 1950).